quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Eu, robô


O ministério da saúde adverte: ver o cara que você gosta pode deformar seus sentidos por alguns minutos e transformá-lo numa criatura mecânica não identificada.

Ontem, a minha patologia começou no exato momento que eu me virei e olhei de relance aquele homem lá atrás, na porta da sala dele. Como reflexo, voltei pra posição inicial e abaixei a cabeça disfarçadamente. Tive um surto de fé, geralmente é o que acontece com os doentes, “Senhor, deixa-me invisível neste segundo”.

No local que eu estava, era atendida em um guichê solicitando um tal certificado. Todas as coisas que a atendente estava falando comigo já não eram mais ouvidas a partir da última visão. Foi então que o primeiro sintoma foi detectado: fiquei surda.

Não contente, o homem não voltou pra sua sala. Ele foi passear por onde eu estava. E quando eu ali de costas e cabeça baixa ouvi “muitos atendimentos por aqui hoje?” - disse ele para qualquer uma das outras atendentes, percebi que eu havia dado um diagnóstico precipitado, não tinha ficado surda, pois meus ouvidos ouviam perfeitamente a voz dele. Não era surdez, era audição seletiva. Só ouvia a voz “do tal” (não que ele fale baixo), mas ele estava atrás da parede e eu só ouvia o que ele dizia.

A atendente continuava na minha frente, me dando notícias ruins que eu não conseguia processar, ecoando no vazio dos meus pensamentos ela dizia algo como “suas notas não estão no sistema”. E o pior, eu estava virada pra ela, com quem presta atenção e dialogando com ela. O quê? Eu não sei. Segundo sintoma: piloto automático.

E se não bastasse o “hã?!” mais confuso que eu dei em toda a minha vida pra atendente, o homem voltou e novamente passou a polegadas de distância de mim. E depois do giro de 180° que meu pescoço deu para acompanhá-lo, posso também considerar que minhas articulações estavam molecularmente mais flexíveis. E foi aí que eu percebi que a minha oração tinha funcionado, fiquei invisível. Seria Poder Divino ou mais um sintoma? Será que o fato de eu estar bem no cantinho da sala, atrás das cadeiras, ajudou?

O bom da invisibilidade é que você vê o que quer ver sem precisar disfarçar. E acompanhando cada passo eu vi “o tal” estar do mesmo jeito que eu o vi pela primeira vez. As mesmas calças marrons vestidas quase na altura do peito, seguras por um cinto escuro e com a blusa bege para dentro com botões e mangas curtas. Ainda está gordo, até mais acima do peso do que antes. E depois de todas essas características, encontramos mais um sintoma. Minha visão normal se transformou em visão com scanneamento detalhado do objeto.

Audição seletiva, piloto automático, articulações molecularmente mais flexíveis e visão com scanneamento, ver a pessoa que você gosta lhe transforma num robô? Poderia até acreditar nesta hipótese se não fosse eu estar sentindo, naqueles minutos de transformações, o meu corpo frio, minhas mãos suando e meu coração batendo acelerado como se eu tivesse corrido a maratona São Silvestre com o sol escaldante de Manaus.

Que robô que nada. Eu estava muito viva. E mesmo que todos os dias eu tenha tentado me tornar uma criatura mecânica desprovida desses sentimentos perturbantes, eu ainda não consegui tal feito. A conclusão que posso ter depois deste episódio é que este homem de calças fora da altura normal da cintura ainda me deixa muito mais humana do que eu mesma tinha consciência. Eu não sou um robô, e a grande prova disso é que robô não chora de saudade quando chega em casa.

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